Há coisas que serão sempre nossas… mesmo quando não nos pertencem. Num mundo onde tudo se mede pelo seu valor facial, ou por títulos de propriedade, nem sempre o mais importante pode ser avaliado assim. Se aquilo que nós carregamos fosse apenas o que se pode comprar ou vender seriamos uns pobres de espírito.
Por isso, uma parte do rio Tua é minha! Só minha.
Eu sei que outros poderão dizer o mesmo. Ainda bem! Todos temos os mesmos direitos. Afinal o rio é de todos os que sentem o mesmo que eu, uma espécie de sociedade anónima onde todos investimos uma parte das memórias das nossas vidas. Poderia dizer que tenho este gosto pelo rio Tua, de Mirandela até à foz, é verdade… mas, aquele troço que fica no termo de Pereiros, entre as estações de Codeçais e Abreiro, na ponte da Cabreira, esse é mesmo, mesmo meu! Antes que o rio seja afogado prometi a mim mesmo que tenho que cá vir mais vezes. Neste início de Maio, o efeito que tudo isto tem sobre mim é tão forte que é apenas comparável à promessa de tempestade que se aproxima, a única interrogação é porque não vim mais cedo.
Antigamente, o percurso para cá chegar não era fácil, por isso, ir ao rio não era um hábito frequente, era um desafio enorme, imponente como toda a paisagem que o rodeia. Descia-se todas aquelas serranias por íngremes caminhos de pedras, por veredas e carreiros de cabras. A ribeira não tinha uma ponte, saltava-se de pedra em pedra. Era outro mundo, outra dimensão, por isso tão marcante. Uma boa hora e meia de caminho. Passava-se lá o dia ou a noite. Hoje parece mais perto, quando não se vai a pé!
O rio Tua faz parte da nossa vida, habituei-me a ouvir as histórias e aventuras do meu avô, uma parte da sua vida de trabalho quando tinha por lá as azenhas e se dedicava ao negócio da farinha.
Ninguém contava histórias como ele!
Quando desci ao Tua pela primeira vez era muito pequeno. Fomos todos! Os mais pequenos a cavalo, a promessa de ir à pesca, a merenda, o medo de ficar a noite… ver passar o comboio a vapor, os banhos intermináveis nas águas mornas de Verão!
Uma grande aventura.
Era também chegada a hora de confrontar o lado tenebroso do rio, de imaginar nas pedras, nas árvores a dimensão assustadora das cheias, das noites de invernia, quando submergia a Pedra Seixa e em remoinhos enormes quase chegava à linha. As pedras que restavam da velha azenha onde o meu tio adolescente e o Jaime Borges ficaram isolados, pendurados aos gritos no telhado, numa das maiores cheias de que havia memória. O meu avô, rodeado dos netos, contava tudo isto com grande subtileza nos detalhes, com emoção no brilho dos olhos, mas não como uma tragédia, como alguém que se agarrou ao rio, que lhe sobreviveu e que tinha por ele um respeito e uma paixão desmedidas. Estas foram das maiores expedições da minha infância, todo o meu mundo cabia ali naquelas escarpas gigantescas, rudes e nas águas calmas do Tua.
Aos dez anos meteram-me finalmente no comboio, juntamente com uma mala muito maior do que eu, na estação de Codeçais e entregaram-me ao revisor (o revisor era o senhor Luciano de Codeçais e o filho dele, o Daniel, era o meu companheiro nesta nova grande aventura, por isso, estávamos bem entregues) e fui estudar para Vinhais. Naqueles dois anos só vinha a casa nas férias, quando passava a estação de Abreiro já vinha pendurado na janela para ver passar a ponte da Cabreira e a Pedra Seixa, já estava em casa!
Quando vim para Mirandela tudo parecia mais perto. Ir a pé da estação de Codeçais para os Pereiros era uma dura rotina. Como a subida era para casa, até parecia mais perto! Foi por esta altura que a linha do Tua começou a entrar em decadência, os horários dos comboios foram reduzidos e não paravam em todas as estações. Foi aqui que as minhas expedições ao rio se mostraram muito úteis quando, no Inverno de 1973, saí de Mirandela, no último comboio da tarde e tive de sair na estação de Abreiro. Estupefacto por ninguém me ter avisado de que o comboio não parava na estação de Codeçais, fiz-me ao caminho, linha abaixo. Quando cheguei à Pedra Seixa e à ponte da Cabreira já era de noite… nunca o caminho do rio me tinha parecido tão longe, as montanhas tão altas e ameaçadoras, os sons da noite tão estridentes e confusos e, ainda faltava muito caminho para casa!
Durante toda a minha adolescência a rapaziada de Pereiros, no Verão, ia ao rio passar o dia, tomar banho, à pesca… era um ritual de grupo, quase de iniciação à vida adulta. Mais tarde ainda lá voltei, várias vezes, com o meu tio à caça dos javalis, das perdizes e dos patos. Estes estavam novamente a repovoar o rio e a ribeira e nós queríamos experimentar um pato no formo como a minha avó fazia no tempo da azenha!...
Talvez um dia conte todas estas histórias.
Parabéns caro amigo !!
ResponderEliminarexcelente video e fabuloso texto !
Abraço
Luis
Eu também poderia reivindicar uma parte do rio Tua, nomeadamente aquela que vai da "pedra do salto", ligeiramente a montante do tunel e ponte metalica, até à foz, a meu vêr, a parte mais bela porque, apos aquela garganta estreita e rochosa, quase adormece ao passar por baixo da ponte rodoviaria para logo a seguir formar um açude com uma azenha em cada margem (foi tudo destruido ha anos)e depois se "espraiar" até ser absorvido pelo Douro!
ResponderEliminarEu também poderia fazer parte dessa SA da memoria, infelizmente ela não pesa perante a força do dinheiro que vai destruir ele vale magnifico. Para o capital, a beleza não conta..
E portanto, que o rio Tua é lindo, não é verdade?
Durante décadas poucos viram essa beleza e poucos se interessaram pelo destino da via férrea e do rio. Frequenta-los, nao chegava. Era preciso ama-los, protegê-los, e lutar para que eles perdurassem.
Ultimamente muitos lutaram para que a linha fosse mantida, para que o vale fosse protegido. Mas era uma luta desigual (eu desde 2008 que o faço). Agora que a barragem começou, segundo as informaçoes que tenho, e que Portugal tem um governo de direita, as vozes calaram-se...
Continuemos com sociedades anonimas da memoria, é, no fundo, o que nos resta.
Obrigado amigos,
ResponderEliminarhá imensa gente que está ligada a este rio, é uma pena e um desperdício ecológico que o rio vá ser "afogado", o que se vai produzir de energia eléctrica não justifica.Era, sem dúvida, uma luta inglória contra argumentos demagógicos como "o emprego criado", "as energias limpas","a dependência do estrangeiro"... a que se juntaram uma linha deficitária e os acidente ferroviários... nem foi preciso fechar a linha.!
Hernâni
Obrigado Hernâni por este texto e por estas imagens. Só quem ama esta terra, como nós, consegue entender o significado de todas as tuas palavras.
ResponderEliminarAinda há uma semana andei por estas paragens. Cada visita que faço, mais vontade sinto em voltar.
Quando estamos longe deste "Reino maravilhoso" é mesmo como uma "dor que desatina sem doer".
Raúl Figueiredo
Excelente!
ResponderEliminarToda a beleza do Tua e de todos os "Tuas" do País só é realçada por comungar do nosso espírito. Da nossa memória.
O rio é aquilo que os olhos vêem. O que o coração sente. É por nós que ele se envaidece e floresce.
Devemos-lhe gratidão. Mesmo que a maldade do homem o afogue devemos-lhe a memória.
Amigo Hernâni, queremos ouvir-lhe essas histórias. Porque o Tua corre-nos na alma.
(Pedro Moniz)
Olá Raúl!
ResponderEliminarEu soube que andaste por estas paragens, alguém me falou de "uma menina muito bonita"...
há quantos anos não desces ao rio?
Um abraço,
Hernâni
Bonitas palavras.O rio é isso mesmo!As histórias são, por vezes, coisas muito pessoais e, por isso, é preciso esperar que elas desçam ao sabor da corrente do rio...
ResponderEliminarUm abraço, participe.
Hernâni
Olá Hernâni!
ResponderEliminarDar um passeio ao longo do rio Tua é um desejo adiado mas que irei concretizar. Só tenho mesmo um receio; ficar ainda mais apaixonado pela nossa terra.
Raúl
Terra Profunda
ResponderEliminarSubscrevo as palavras de Pedro Moniz
Deixe o "rio navegar"
Saudações amigo Hernâni
Parabéns por este belo trabalho sobre a aldeia de Pereiros. Aldeia por onde passo bastantes vezes, pois minha esposa é de Codeçais. Algumas fotos de pereiros no meu blogue, mas com vontade de descobrir mais da aldeia, pois vejo aqui no blogue, que há muito para descobrir. Quem sabe um dia não nos juntamos numa dessas descobertas por Pereiros.
ResponderEliminarAcabei de colocar no meu blogue, ligação para o Blogue dedicado à aldeia de Pereiros.
Abraço
Jorge Delfim
Olá jorge,
ResponderEliminarO blog é muito recente, há coisas que eu gostaria de tratar e quase ainda não lhe toquei como a História e o património. Também estou à espera que seja publicado o 2º volume do livro Por Terras de Ansiães de Cristiano Morais para poder usar os documentos da valiosa investigação que ele fez ao longo da sua vida.
Claro que um dia nos podemos juntar, por exemplo, também com o Aníbal e conhecer melhor os Pereiros e tudo o que o rodeia.
Um abraço,
Hernâni