BEM – VINDO
O objectivo deste blog é duplo, dar a conhecer Pereiros de Ansiães, a sua história, a sua paisagem, o seu património e as suas tradições; é também uma forma de fazer aquilo que eu gosto, de partilhar emoções e memórias.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Terras da comenda - 1

O caminho faz-se... caminhando

Agosto, infelizmente, não tive um dia completo em Pereiros. Aproveitei dois fins de tarde e pus-me ao caminho. Eu já sabia o seu significado, que elas estavam por ali, algures. Peguei no livro "Por Terras de Ansiães" e, depois de uma conversa com o seu autor, Cristiano Morais, munido com a cópia das demarcações feitas pelo juiz em 1728, comecei por aquela que conhecia.

O que procurei foram as cruzes de demarcação da comenda de Freixiel da Ordem dos Hospitalários ou de Malta.
A História de Pereiros está intimamente ligada à de Freixiel, pertenceu a este concelho durante centenas de anos e foi, integrado no concelho de Freixiel, comenda da Ordem do Hospital mais tarde também chamada de Malta. Freixiel, Pereiros, Codeçais e Mogo de Malta pertenciam a esta comenda.

Comendas eram benefícios eclesiásticos concedidos pelo rei a quem desejava recompensar de quaisquer serviços. A introdução da Ordem dos Hospitalários em Portugal ocorreu nos inícios do século XII.
Entre 1122 e 1128 D.Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, concedeu-lhe o mosteiro de Leça do Balio, a sua primeira casa capitular. A organização dos freires do Hospital em Ordem de Cavalaria, de forma a constituir um corpo militar que fosse importante na Reconquista, só aconteceu no reinado de D. Afonso Henriques. Portugal envolvido em lutas constantes com os muçulmanos e em fase de alargamento das suas fronteiras para sul precisava de forças fiéis, militarmente organizadas capazes de ajudar no esforço de guerra. As ordens religiosas militares eram bem o exemplo. Por isso, foram recompensados com largos domínios de terras no Sul do país e numerosos pequenos domínios dispersos pelo Centro e Norte de Portugal. Era o caso da comenda de Freixiel.

A paróquia de Santa Maria de Freixiel foi retirada de Ansiães e doada por D. Teresa, nos inícios do século XII, à Ordem dos Hospitalários. Entre doações, compras, vendas e trocas, houve um total de 54 comendas da Ordem do Hospital em Portugal. Estas comendas não existiram todas em simultâneo. A comenda de Freixiel manteve-se até ser extinta pela reforma liberal de 1834.

As comendas eram fonte de grandes rendimentos para a ordem. Foram estes rendimentos que financiaram hospitais e fortalezas nos caminhos das Cruzadas para a Terra Santa e em Jerusalém; assistência aos peregrinos nos caminhos de S. Tiago para Compostela e a construção de castelos de Norte para Sul do nosso país, no longo processo de reconquista contra os muçulmanos. São quase 900 anos! Ainda antes da independência de Portugal em 1143.
Por isso, temos que olhar para elas como símbolos de Portugal, um país que se formou com a espada numa mão e a bíblia na outra. Mais tarde, depois da reconquista de todo o território e do fim das cruzadas, estas comendas foram usadas pelo rei para recompensar quem ele muito bem entendeu. Tornaram-se uma forma de sobrecarregar os camponeses com mais impostos.

Estas demarcações foram feitas em 1728: "...aos dittos quinze dias do mez de Dezembro (...) logo que foy feyto o autto retro pareceram prezentes os offeciaes da Camara desta Villa de Anciaes no autto retro nomeados e em prezenca delles e dos de Freixiel e da mayor parte dos moradores da Felgueira, Brunheda e Sentrilha e dos Codesaes e Pereiros mandou o ditto Bernardo de Figueiredo, Juis do tombo, continuar a devisam e demarcacam e se continuou pella maneira seguinte:" Cristiano Morais, Por Terras de Ansiães, p.436.
As cruzes do século XVIII foram feitas com base noutras já existentes de 1614 pelo "Lesenciado" Gonçalo de Lemos da Roza.











Estas duas demarcações apresentadas nas fotografias marcam um percurso. A cruz grande no malhão situado no caminho para a Felgueira, no Chão do Rente, confirma o termo de demarcação entre os limites da Felgueira e Pereiros (malhão do lado esquerdo) e entre Pereiros e Zêdes, no Vale da Porca. (Cruzes do lado direito)

"E prosseguindo a mesma direitura e demarcacam do Cham do Rente de sima no simo delle e ao pé do caminho que vay de Felgueira para o lugar dos Pereiros, no sima da Costeirinha da Justa se achou em hum penedo a Comenda de Malta, ao pé della no mesmo penedo mandou elle juis fazer huma crus e levantar no caminho um malham (...)" Cristiano Morais,op.cit. p.437.

As demarcações entre o Chão do Rente, no caminho da Felgueira e a Fonte Quente, estão por localizar. Ficam para outra altura. Entre a Fonte Quente e o Vale da Porca localizei quatro cruzes, estão indicadas no percurso do mapa de satélite. Pelas distâncias neste percurso, entre as quatro cruzes, deve haver mais duas. Com um GPS podiam ser tiradas, com grande precisão, as coordenadas geográficas de todas as demarcações, assim, estão apenas marcadas de forma aproximada. A fotografia de satélite é, devido ao tamanho do mato e aos efeitos do incêndio, logo a seguir a 2003.


Ver Pereiros, marcações da Ordem de Malta num mapa maior

A demarcação da comenda dos hospitalários mais fácil de encontrar fica na Fonte Quente. É interessante como o limite da comenda e do antigo concelho de Freixiel descia tanto em relação àquilo que nós hoje chamamos o Termo de Pereiros.
A cruz encontra-se, não no penedo grande, mas nas pedras situadas na sua base voltada a nascente. A toponímia, os nomes das propriedades rurais, geralmente, mantêm-se as mesmas do século XVIII para a actualidade. O nome Fonte Quente não está referido.



As cruzes grandes que o juiz mandou circular como esta do penedo da Fonte Quente têm 35cm. Têm um relevo bem marcado com a cruz dos Hospitalários o que as torna inconfundíveis.




"(...) que decia a demarcacam
direita ao nascente pello Seixigal abaixo e ao pé do mayor penedo movediço, digo penedo maciço que esta por sima do ribeiro da parte norte do mesmo penedo, em huma lage se achou a Comenda de Malta, e coiza de duas varas della no dito grande penedo da ditta parte do norte delle mandou elle juis fazer huma grande cruz." Cristiano Morais, op,cit.p.438

"E desta crus pasa o ribeyro que chamam do Sabiello que vem do Logoeiro e dece para o lugar dos Pereiros" Cristiano Morais, op.cit.p.438






A demarcação desce algures da Felgueira (a única marcação encontrada foi o malhão do Chão do Rente) direita ao penedo do lado poente da estrada municipal Pereiros - Zêdes e segue para nascente, atravessando o ribeiro.



"(...) e continu
ando a demarcacam direita para o nascente por humas fraguas asima na mais alta que esta no simo dellas mandou elle juis fazer uma crus." Cristiano Morais, op.cit.p.438







As cruzes intermédias têm aproximadamente 24cm. Esta foi feita no topo de um conjunto comprido de penedos do lado nascente do ribeiro do "Sabiello". Na fotografia pode ver-se, ao fundo, o penedo a poente do ribeiro, por cima da estrada e, imaginar a linha de demarcação.




Desta crista de penedos de granito, do lado nascente do ribeiro do "Sabiello", ao lado do antigo caminho, avista-se Pereiros e as terras da comenda.




Esta cruz intermédia também com 24cm está mais próxima do caminho do Vale da Porca. como se pode ver na fotografia da esquerda, marca uma linha recta, a longa distância, em direcção à cruz do lado nascente do ribeiro do "Sabiello", mostrada anteriormente. Na fotografia do meio, pode ver-se que a cruz de demarcação foi feita paralela à estrada, na chamada subida do Termo. Contudo, não foi a estrada que lhe serviu de referência mas sim o antigo caminho Pereiros - Zêdes. É entre esta cruz intermédia e as duas que sobem da Fonte Quente e atravessam o ribeiro que deverá haver mais duas. A fotografia da direita, aponta já para o alto entre o Termo e o Vale da Porca, onde vamos encontrar outra cruz principal, mesmo ao lado do caminho. O mato que cresceu depois do incêndio de 2003 não facilita a busca naquele vale apertado onde existiam calçadas cultivadas.

Ao lado do caminho para o Vale da Porca, a menos de 100 metros da estrada municipal, no alto que divide o Termo do Vale da Porca, do lado esquerdo, podemos encontrar este conjunto magnífico, uma cruz grande circular com os habituais 35cm e, outra ao lado, também com os habituais 24cm.












"E no simo da mesma Fragua da Coriscada em huma pedra baixa que esta no mesmo lado sul se achou outra Comenda da Ordem de Malta (...) o dito juis mandou fazer outra crus acomendada ao pé da ditta comenda na mesma pedra (...)
A qual demarcacam se continua das dittas cruzes e comendas que estam no ditto simo da Fraga da Coriscada, entre o limite do lugar de Pereiros que athe agora vinha continuando com o da Felgueira, a continuar-se com o lugar de Zedes que segue ao da mesma Felgueira, prezentes a mayor parte dos moradores do ditto lugar de Zedes e mais os do lugar dos Pereiros (...) Cristiano Morais, op.cit.p.438

Passando as cruzes da comenda, começando a descer o caminho para o Vale da Porca, vê-se novamente a aldeia a espreitar ao fundo. As demarcações continuam mas, em que direcção?... "a um tiro de barreira do lameiro do Vale da Porca"... pois... a partir daqui abrem-se novos horizontes, em frente o Carvalhal e os Folgares, ainda segui o caminho até aos nascentes, não era o dia de encontrar mais nada.

No regresso, um último olhar sobre Pereiros neste fim de tarde de Agosto. Uma brisa fresca compensa o esforço.

Já de noite uma última paragem. Está uma lua cheia fantástica. Estas cruzes estão aqui desde 1614 (século XVII) e 1728 (século XVIII)! O que diriam os juízes que as mandaram fazer se me vissem aqui sentado, sozinho, a esta hora. A paisagem está completamente alterada e adulterada! Basta recuar na memória vinte e cinco anos, os pinhais, por onde se podia circular livremente, foram substituídos por este deserto de mato denso.

Passei por este caminho durante quase vinte anos! Quando andava às perdizes com o meu tio, João Baptista Pinheiro, iniciávamos a jornada de caça mais ou menos neste local. Por incrível que pareça, nunca vi estas duas cruzes...
Fiquei aqui sentado também por causa dele, há momentos e emoções que se partilham, mesmo com pessoas que já não estão fisicamente connosco... que saudades!