Passei por aqui em plena Primavera. Vim à
procura de distância e de tempo. Máquina fotográfica na mão, à espera do
momento em que pudesse sentir-me parte do próprio caminho. Quando conseguimos
isso já vale a pena a caminhada. Tinha feito este longo percurso pelo planalto,
contornando o alto do Termo, entre Pereiros, Zedes e Folgares num dia muito
mais agreste, em pleno Outono, na caça às perdizes com o meu tio. Nesse dia
distante, tínhamos ido bater ao alto dos Folgares e, dali, tive o privilégio de
ver uma das paisagens mais soberbas que ficou gravada para sempre ao longo da
minha vida.
Vale de Côvo é uma paisagem
mística, de fim do mundo, uma atmosfera primordial, intacta, solene. Depois do
enorme planalto dividido entre Carrazeda e Vila Flor, de forma abrupta, caímos
no precipício guardado por gigantes ciclópicos. Horizontes desmesurados até
onde a vista alcança, a serra dos Passos, Bornes e o Alvão. Manchas coloridas de
giestas, torgas e carquejas, o vale do Tua em toda a sua extensão até se fundir
no azul do céu. O percurso atravessa passagens entre enormes maciços de granito
que se agigantam pendurados no cume ou se agarram, firmemente, nas profundas
gargantas que correm escancaradas em direção a Pereiros.
Mas… para mim, Vale de Côvo tem outro significado,
uma memória longínqua e assustadora. Vale de Côvo era o caminho das trovoadas
que atormentavam o mês de Maio e Junho até aos Santos Populares. Apesar do medo e do
respeito pelas trovoadas despertavam-me, na mesma medida, uma enorme curiosidade. A esta
natureza de primavera, espelhada num céu azul cristalino faltam os enormes
castelos de nuvens, presságio de tempestade.
Na minha infância, quando olhava Vale de Côvo não o via nesta perspetiva do planalto mas do fundo do vale, de baixo
para cima, de forma longínqua e inacessível. Lá longe, pendurado no cume, um
enorme gigante, ameaçador, vigilante que podia atirar trovões, raios e coriscos
de forma perigosa e inesperada. Vale de Côvo tinha um carácter quase sagrado,
de destino inevitável, apenas as preces a Santa Bárbara o podiam aplacar.
Nesses
dias, o meu avô dizia, está um calor de trovoada. Quando no fim do mês de Maio,
por volta das três da tarde, cresciam grandes castelos de nuvens, todos se
preparavam.
Vem aí a trovoada! Vem de Vale de Côvo!
Vem aí a trovoada! Vem de Vale de Côvo!
Recortadas sobre o céu azul, nuvens arredondadas
crescem a pique, imponentes, brancas no topo como algodão em rama mas cinzentas
e avermelhadas na base. Perfilam-se em poucos minutos. O primeiro raio rasga a
crista de Vale de Côvo, o trovão estoura e ecoa em ondas sucessivas como se o
gigante anunciasse o fim do mundo.
A partir daqui é uma corrida alucinante! Faíscas
e trovões descem o vale, rasgam o céu de forma impiedosa entre os enormes
penhascos. São acompanhados por uma chuva grossa e granizo que se vê ao longe, em cordas brancas, descendo das entranhas das nuvens. Ainda com sol, o ar vibra
com os relâmpagos e o chão estremece com os trovões. A ventania aumenta, entre
o medo e a curiosidade esgueiro-me para a janela da varanda, espreito
pendurado, num instante acaba de galgar o Gricho e descer os Carvalhais. As faíscas marcam o caminho, sustenho a respiração, os segundos são cada vez menos, ouve-se o ribombar do trovão cada vez mais perto. De repente, fica tudo escuro. Agora vem desembestada para cima de nós!
Caem as primeiras faíscas diretas, a luz ofuscante percorre todos os cantos da casa, ao mesmo tempo o estampido agudo, como um grito, o trovão! Depois, prolonga-se em estrondos graves e ensurdecedores. Quase caio da janela!
O gigante de Vale de Côvo soltou o diabo e todos os mafarricos, o inferno na terra.
Oiço a minha mãe e a minha tia rezar.
Santa Bárbara bendita,
Que no céu está escrita.
Com papel e água benta,
Deus nos livre desta tormenta!
Magnificat minha alma,
engrandece o Senhor,
Jesus meu salvador!
Tapo os ouvidos e encosto-me a um canto.
Instala-se
o caos, a casa estremece, o telhado parece que vem abaixo, ouve-se o ricochete
nas telhas, as janelas são batidas de forma violenta, é granizo de certeza! O
estrondo é tão profundo que percorre e agita todo o corpo. Sinto-me como se estivesse no
fundo de um poço! O tempo pára e arrasta-se, os minutos parecem horas.
Santa
Bárbara tenha misericórdia de nós! Magnificat minha alma... engrandece o Senhor... e tudo se repete vezes sem conta!
Junta-se
o ruído rouco de torrentes de chuva que descem as ruas e se juntam num ribeiro de águas
bravas. A trovoada corre para o rio Tua como se o gigante de Vale de Côvo
apontasse todo o percurso de sofrimento a cumprir. É tempo de saltar para a
varanda ver a enxurrada. A torre da igreja e o galinho, recortados sobre um céu vermelho de fogo, ainda estão lá. Alguns mafarricos malvados ficam para trás, sozinhos e vingativos, ainda não acabou, uma faísca caiu bem perto.
Cuidado! Estou a desafiar o gigante!
Arrepiado, lembro-me das histórias do meu avô sobre faíscas que matavam o gado dos pastores; descascavam, de cima abaixo, os pinheiros mais altos ou entravam pelas janelas abertas das casas. A trovoada invade todo o vale do Tua. Vai direita a Mirandela e a Bornes.
Cuidado! Estou a desafiar o gigante!
Arrepiado, lembro-me das histórias do meu avô sobre faíscas que matavam o gado dos pastores; descascavam, de cima abaixo, os pinheiros mais altos ou entravam pelas janelas abertas das casas. A trovoada invade todo o vale do Tua. Vai direita a Mirandela e a Bornes.
Será
que o granizo destruiu tudo?
Agora ao fim da tarde, estou aqui, no colo do
gigante! Desci apenas uma parte do vale e o resultado é esmagador. Tenho de subir até ao planalto.
A persistência da gente laboriosa dos Folgares fez caminhos, plantou amendoeiras e árvores de fruto nesta paisagem pré-humana de formas bizarras, estranhas e equilíbrios impossíveis.
A persistência da gente laboriosa dos Folgares fez caminhos, plantou amendoeiras e árvores de fruto nesta paisagem pré-humana de formas bizarras, estranhas e equilíbrios impossíveis.
Enquanto
aproveito os caminhos bordejados de torgas brancas, rosmaninho e amendoeiras
plantadas em sítios improváveis, um casal de perdizes levanta de forma suave e
afunda-se com o granito. Têm o ninho por perto.
Toda a natureza faz sentido.
Reparo em raros narcisos amarelos, agarrados ao musgo nos recantos das grandes fragas, protegidos do frio, voltados a nascente. Nunca tinha visto tantos juntos. Um olhar mais atento encontra outras plantas que florescem de forma abundante um pouco por todo o lado.
Toda a natureza faz sentido.
Reparo em raros narcisos amarelos, agarrados ao musgo nos recantos das grandes fragas, protegidos do frio, voltados a nascente. Nunca tinha visto tantos juntos. Um olhar mais atento encontra outras plantas que florescem de forma abundante um pouco por todo o lado.
O diabo e os mafarricos não andam por aqui mas
encontrei o tempo e o momento em que me senti parte do próprio caminho.
Atualmente, as trovoadas de Vale de Côvo não têm a frequência e a força de outros tempos. Talvez as linhas elétricas de alta tensão tenham alterado toda a sua dinâmica. Contudo, não desapareceram, quando estão reunidas todas as condições, o gigante acorda e semeia a destruição no vale do Tua. Se estiver presente numa dessas ocasiões, vou subir o vale... desafiar o gigante!
Enquanto faço a subida íngreme, a tarde vai terminando... a brisa fresca do planalto a mandar-me para casa!
Atualmente, as trovoadas de Vale de Côvo não têm a frequência e a força de outros tempos. Talvez as linhas elétricas de alta tensão tenham alterado toda a sua dinâmica. Contudo, não desapareceram, quando estão reunidas todas as condições, o gigante acorda e semeia a destruição no vale do Tua. Se estiver presente numa dessas ocasiões, vou subir o vale... desafiar o gigante!
Enquanto faço a subida íngreme, a tarde vai terminando... a brisa fresca do planalto a mandar-me para casa!
Como disse Miguel Torga, um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia… um oceano megalítico que se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição!
Só um transmontano como ele saberia definir de forma tão
umbilical este espaço.
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